RESUMO: Analisa-se a dimensão tomada pelo papel da Defensoria Pública na contemporaneidade por meio da evolução histórico-social da abrangência da assistência jurídica integral e gratuita, dos aspectos identificadores do cidadão necessitado e em estado de vulnerabilidade e dos modernos princípios e objetivos inseridos na seara da instituição.
Palavras-chave: Defensoria Pública; acesso à Justiça; estado de vulnerabilidade.
ABSTRACT: It's analyzed the dimension of Public Defender's new role in contemporaneity: the comprehensiveness of Legal Aid, the identifying aspects of the needy and vulnerable citizen, and the modern principles and objectives of Public Defender.
Keywords: Public Defender; access to justice; state of vulnerability.
SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 o direito do acesso à justiça; 3 a assistência jurídica integral e gratuita; 4 o cidadão necessitado e em estado de vulnerabilidade; 5 o novo perfil institucional da defensoria pública; 6 considerações finais; Referências bibliográficas.
1 INTRODUÇÃO
A ascensão dos direitos sociais, a partir do século XX, provocou maior atenção à necessidade de um sistema de justiça igualitário, de modo que o direito do acesso à Justiça ganhou espaço de relevância no debate político e no desenvolvimento dos regimes jurídicos modernos, sobretudo em razão do anseio de uma concretização efetiva pelo Estado do mínimo existencial dos cidadãos.
No Brasil, o direito do acesso à Justiça manifestou-se na Constituição brasileira de 1988, em especial, através do direito da assistência jurídica integral e gratuita, que garante a dispensa do adiantamento das despesas processuais e o atendimento jurídico pela Defensoria Pública a todos aqueles que não dispunham de recursos suficientes para acessarem o sistema de justiça sem o amparo estatal. A Defensoria Pública é, portanto, desde o seu princípio, a principal instituição responsável por garantir ao cidadão marginalizado o acesso à Justiça.
Com o amadurecimento do Estado Democrático de Direito, diversos aprimoraremos foram suscitados no campo do acesso à Justiça. A Defensoria Pública, corolário de uma sociedade que se pretende livre, justa e solidária, prossegue amadurecendo junto com a democracia brasileira, refletindo os avanços na difusão do direito do acesso à Justiça, a amplitude da assistência jurídica integral e gratuita e a maior compreensão sobre o perfil de seus cidadãos destinatários, passando a atuar cada vez mais em consonância com a primazia da dignidade da pessoa humana, a redução das desigualdades sociais e a prevalência e efetividade dos direitos humanos.
2 O DIREITO DO ACESSO À JUSTIÇA
O advento do Estado Social de Direito, evidenciado desde 1917 pela elaboração da Constituição mexicana, fundamenta-se, sobretudo, nas seguintes características: intervencionismo estatal relativo a proteção, preservação e promoção do mercado; satisfação efetiva de reivindicações sociais, econômicas e culturais do povo; e organização da comunidade internacional e proteção universal dos direitos humanos[1]. Esse Estado de bem-estar social, objetivando a promoção efetiva da igualdade e da liberdade, não se limita a proclamar formalmente direitos civis e políticos, mas assegura condições materiais mínimas aos seus cidadãos.
Com a ascensão deste novo paradigma, um amplo rol de direitos fundamentais passaram a ser finalmente positivados (saúde, educação, moradia, alimentação, assistência social, saneamento básico, qualidade ambiental, entre outros), exigindo prestações estatais positivas para a efetivação do bem-estar social. Neste contexto, o direito do acesso à Justiça consolidase justamente como o dever do Estado em assegurar ao cidadão o alcance não apenas formal mas efetivo a todos os direitos assegurados pela ordem jurídica.
Na década de 1970, o movimento do acesso à Justiça ganhou verdadeiro contorno com a profunda pesquisa "Projeto Florença", liderada por Mauro Cappelletti e Bryant Garth, que tiveram como objeto de estudo temas relevantes sobre a matéria sob uma ótica multidisciplinar[2]. Como destaca Mauro Cappelletti,
(...) a titularidade de direitos é destituída de sentido na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.[3]
A partir da conjuntura na qual as Constituições, no século XX, passaram a integrar as liberdades clássicas com os direitos sociais, objetivando a concreta participação do cidadão na sociedade, o direito do acesso à Justiça tornou-se objeto da preocupação dos sistemas jurídicos[4]. Afinal, como adverte Boaventura de Sousa Santos, os novos direitos sociais e econômicos, sem a implementação de mecanismos que fizessem impor o seu cumprimento, assumiriam a configuração de meras declarações políticas, de conteúdo e função mistificadores[5].
O direito do acesso à Justiça, como elemento normativo que viabiliza, através do adequado sistema de justiça, o acesso de todos os cidadãos aos demais direitos fundamentais, possui importância central no próprio sistema político-jurídico estatal. A própria denominação "Estado de Direito" remonta à subordinação do Estado-Legislador, Estado-Administrador e Estado-Juiz à Constituição e aos direitos fundamentais dos indivíduos e da coletividade[6]. Desta forma, o direito de acesso à Justiça demonstra-se não apenas necessário para viabilizar a tutela dos demais direitos, como imprescindível para uma organização justa e democrática.
Ao serem positivados os direitos que compõem o mínimo existencial dos cidadãos, torna-se perfeitamente inequívoca a possibilidade de reivindicação do cumprimento destes perante o Estado. Hans Kelsen, mesmo ao traçar um exame do Direito numa ótica estritamente técnico-científica, aponta que o Estado como pessoa jurídica pode praticar um ilícito ao não cumprir uma obrigação de prestar que lhe é imposta pela ordem jurídica[7]. O direito do acesso à Justiça desponta neste cenário como o elemento normativo-instrumental integrante do conteúdo do direito fundamental ao mínimo existencial, uma vez que possibilita que a ameaça ou lesão a quaisquer direitos sociais sejam levadas concretamente ao crivo do Poder Judiciário.
Ocorre que, apesar do direito do acesso à Justiça firmar-se com o estabelecimento do Estado Social de Direito e no contexto da afirmação dos direitos sociais, há ainda ampla discussão a respeito de sua posição na tipologia dos direitos fundamentais. Como a distinção entre os direitos da primeira e os da segunda dimensão é gradual e não substancial[8], a identificação de alguns direitos fundamentais como integrantes do grupo de direitos civis e políticos ou do grupo dos direitos sociais não sucede de maneira tão clara e precisa. É justamente o que acontece com relação ao direito do acesso à Justiça, considerado ora direito civil e político – mediante sua relevância político-democrática –, ora direito social e econômico – em razão do seu caráter de elemento configurador do bem-estar social.
Tanto na doutrina legal como no discurso político, o direito do acesso à Justiça é quase sempre associado a um direito social[9]. Assim como todos os direitos fundamentais que integram o grupo de direitos sociais e econômicos, o direito do acesso à justiça é essencial para a sustentabilidade de uma sociedade capaz de perpetuar-se ao longo do tempo de maneira harmônica, versando propriamente sobre o efetivo bem-estar dos cidadãos e exigindo do Poder Público uma atuação positiva, uma forma atuante do Estado, prioritariamente na implementação da igualdade social dos hipossuficientes.
Em sentido diverso, Cléber Francisco Alves defende o acesso à Justiça como um direito primordialmente civil, de modo que este integraria a primeira dimensão de direitos fundamentais por ser indispensável ao exercício pleno da prerrogativa fundamental da liberdade e do respeito à igualdade jurídica de todos os cidadãos. Uma vez que o Estado assumiu o monopólio da jurisdição, passou a ter a obrigação de assegurar as condições para a efetiva defesa dos direitos, com a garantia de paridade de armas, sob pena de favorecer a violação impune dos direitos dos carentes de recursos[10]. Roger Smith defende o mesmo entendimento, ressaltando que, embora o direito do acesso à Justiça seja um direito civil e político, reveste uma obrigação positiva de financiamento imposta ao Estado, semelhante a um direito econômico[11].
Há ainda algum reconhecimento, substancialmente contemporâneo ao atual paradigma do Estado Democrático de Direito, de uma multidimensionalidade no direito do acesso à Justiça, segundo a qual este se vincularia às diversas dimensões de direitos fundamentais. O direito do acesso à Justiça, em tamanha amplitude, abrange o fortalecimento da cidadania, a participação no espaço público, o exercício da liberdade para o respeito à igualdade e a integração ao pacto social[12]. Neste sentido, discorre Luiz Guilherme Marinoni:
O direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita é multifuncional. Entre outras funções, assume a de promover a igualdade, com o que se liga imediatamente ao intento constitucional de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, da CF) e de reduzir as desigualdades sociais (art. 3º, III, in fine, da CF). Possibilita, ainda, um efetivo acesso à justiça mediante a organização de um processo justo que leve em consideração as reais diferenças sociais entre as partes. Nessa linha, assume as funções de prestação estatal e de não discriminação.[13]
Embora a discussão a respeito da tipologia do direito do acesso à Justiça possa ser eventualmente encarado com o mero preciosismo doutrinário dentre os estudos jurídicos, esta definição, em verdade, apresenta grande importância no que concerne a sua força coercitiva em face do Estado. A classificação de um direito fundamental como direito civil ou político ou direito social ou econômico implica, sobretudo, em questões relativas a reserva do possível e vedação ao retrocesso, temas substanciais quando se trata de sua efetividade diante alegadas dificuldades financeiro-orçamentárias. Segundo Felipe Isa,
(...) a afirmação da indivisibilidade e interdependência de todos os direitos humanos, como está expresso na maioria dos instrumentos internacionais de direitos humanos, é muitas vezes uma mera afirmação retórica que esconde o fato de que a satisfação dos direitos civis e políticos normalmente prevalece sobre os chamados direitos de segunda geração. Uma das razões invocadas para justificar o déficit nos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais é a natureza distinta das obrigações decorrentes das duas categorias de direitos. Enquanto os Direitos Civis e Políticos (DCP) implicam obrigações imediatas, as obrigações decorrentes dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (DESC) são, ao contrário, progressivas.[14]
O esvaziamento do direito do acesso à Justiça impediria a própria liberdade e igualdade dos indivíduos, porquanto estas apenas são reais quando se possuem as condições materiais para sua autodeterminação. Há nesta garantia indeclinável compromisso com a erradicação da ignorância e da miséria, através da obrigação de entregar ao cidadão marginalizado a possibilidade de desfrutar a eficácia concreta de seus direitos fundamentais e, sobretudo, a dignidade intrínseca à pessoa humana que constitui. O enfoque do acesso à Justiça nas diversas nações[15] é motivo para encarar com otimismo a capacidade dos sistemas jurídicos modernos em atender às necessidades daqueles que, por tanto tempo, não tiveram possibilidade de reivindicar seus direitos, cidadãos desprovidos da liberdade e igualdade há muito positivada.
É exatamente por tamanha importância do acesso à Justiça que a Constituição brasileira de 1988, apelidada como Constituição Cidadã e mundialmente aclamada pelos avanços sociais positivados, o consagrou através do direito da assistência jurídica integral e gratuita. Assim, o Estado brasileiro assume o dever jurídico de assegurar a todos os seus cidadãos, em condições de plena igualdade, a viabilidade de um sistema de justiça que permita reclamar a efetivação da ordem jurídica estabelecida.
3 A ASSISTÊNCIA JURÍDICA INTEGRAL E GRATUITA
O art. 5º, inc. LXXIV, da Constituição brasileira de 1988 estabelece que "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Desta forma, assegura aos cidadãos o acesso à Justiça em condições de igualdade, afastando eventuais óbices socioeconômicos que inviabilizem a sua efetivação, seja por inexistência de condições financeiras para o pagamento das custas judiciais, seja pela impossibilidade de contratar os serviços de um advogado particular. Em relação à Constituição brasileira de 1988, Tiago Fensterseifer pontua que,
com absoluta vanguarda em relação aos outros sistemas constitucionais ocidentais, levou a cabo a verdadeira revolução em prol das pessoas em condições de vulnerabilidade socioeconômica ou mesmo organizacional, alinha ao seu compromisso com a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, II), ao pronunciar, para além de um dever de proteção do Estado brasileiro (art. 134), também um direito fundamental – de natureza social – do indivíduo e da coletividade, o que resulta evidente a partir da inserção topográfica da assistência jurídica integral e gratuita (inciso LXXIV) junto ao art. 5º do nosso texto constitucional, ou seja no catálogo dos direitos fundamentais.[16]
Embora a expressão "acesso à Justiça" seja de definição imprecisa, serve definitivamente para determinar duas finalidades básicas do sistema jurídico pelo qual as pessoas possam reivindicar seus direitos e/ou resolver seus litígios sob os cuidados do Estado: o sistema deve ser igualmente acessível a todos e deve ainda produzir resultados que sejam individualmente justos[17]. A partir do imperativo constitucional que insere o direito do acesso à Justiça por meio da assistência jurídica integral e gratuita, o Estado brasileiro busca cumprir tais finalidades por meio de dois importantes tipos de proteção estatal ao cidadão: o benefício da Justiça gratuita (ou gratuidade de Justiça) e a assistência jurídica stricto sensu.
A gratuidade de Justiça, ou benefício da Justiça gratuita, é a dispensa do adiantamento de despesas processuais, para o qual se exige a tramitação de um processo judicial, o requerimento da parte interessada e o deferimento do juízo perante o qual o processo tramita. Seu objetivo é evitar que a falta de recursos financeiros constitua ao cidadão um óbice intransponível ao acesso à Justiça, na impossibilidade do mesmo arcar com os custos do processo[18].
É compreensível que todo processo judicial tenha um custo financeiro que precisa ser arcado de alguma forma, afinal engloba diversos atos que demandam manutenção financeira: perícias, reproduções de documentos, autenticações, serviços de assistentes técnicos, entre outros. Em regra, pelo princípio da casualidade, o dever de financiar os custos do processo é da parte que lhe ensejou, havendo uma presunção de que esta é a parte que, ao final, restar "vencida"; as normas de sucumbência seguem esta lógica (arts. 82, §2º, e 85, caput, do Código de Processo Civil de 2015). No entanto, por motivos lógicos, somente é possível identificar a parte desprestigiada ao final do processo, de modo que o legislador foi compelido a implementar para durante o curso processual a responsabilidade provisória de todas as partes pelo custeio. Assim, ao final, a parte "vencida" suportará o que houver adiantado, pagará o que eventualmente deixou de ser pago ao longo do processo e ainda deverá ressarcir as demais partes quanto ao que estas adiantaram. O benefício da Justiça gratuita atua no âmbito da responsabilidade provisória pelo custeio do processo judicial; o cidadão hipossuficiente está dispensado do adiantamento de despesas, porém está obrigado a custeá-las ao final do processo, se restar sucumbente, a depender do desfazimento da condição de inviabilidade econômica[19].
Com relação à assistência jurídica gratuita stricto sensu, a fim de suprir eventual incapacidade de acesso aos serviços de advogados particulares, o Poder Constituinte de 1987 inovou ao inserir, de maneira inédita, a obrigação de o Estado manter a Defensoria Pública como instituição jurídica para a defesa dos necessitados. A Constituição brasileira de 1988, no art. 134, determinou que “a Defensoria Pública é instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV” (redação original da Constituição). A Emenda Constitucional nº 80/14, por sua vez, concedeu redação que reforça os objetivos constitucionais e afirma:
Art. 134. A Defensoria Pública é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º desta Constituição Federal.
Mauro Cappelletti e Bryant Garth identificaram três grandes ondas que contribuíram para o alcance do efetivo acesso à Justiça[20], sendo a Defensoria Pública, nos moldes constitucionais, uma instituição que apresenta aptidão para realizar estas diretrizes, com a finalidade de garantir uma revolução no acesso à Justiça no Brasil: a assistência jurídica aos necessitados, o ensino dos direitos à população, o aprimoramento dos instrumentos processuais e a tutela dos direitos e interesses fundamentais individuais e coletivos dos necessitados. Assim, a Constituição Federal, ao garantir uma atuação efetiva, independente e autônoma dos Defensores Públicos, revoluciona na matéria de acesso à Justiça e reforça o Estado Democrático de Direito brasileiro.
A assistência jurídica integral e gratuita é usualmente dividida em gratuidade de Justiça e assistência judiciária, sendo esta última o direito da parte ser assistida em juízo gratuitamente por um profissional do Direito, normalmente membro da Defensoria Pública da União, dos Estados ou do Distrito Federal. No entanto, trata-se de entendimento reducionista, uma vez que ignora meios extrajudiciais de resolução de conflitos. O Poder Judiciário deve ter o monopólio da função jurisdicional, mas não da Justiça, muito menos confundir-se com ela.
A Lei Complementar nº 80/1994, que organiza a Defensoria Pública, acerta ao não apenas definir a instituição como função jurisdicional do Estado, mas também ao incumbir-lhe a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa dos direitos individuais e coletivos em todos os graus, judicial e extrajudicial, de forma integral e gratuita, aos necessitados. O art. 4º, II, da referida Lei, estabelece ainda como função institucional da Defensoria Pública "promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos". A atuação da Defensoria Pública, portanto, não se limita apenas à defesa em juízo, mas também abrange a assistência em sede extrajudicial; tal entendimento é corroborado pela leitura do próprio art. 134 da Constituição, que determina que à Defensoria Pública incumbe a orientação jurídica e defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos necessitados.
Cabe apontar que a Lei nº 11.448/07 conferiu legitimidade à Defensoria Pública para o ajuizamento de ação civil pública, bem como a Lei Complementar nº 132/09, alterando alguns dispositivos na Lei Complementar nº 80/94, deu maior abrangência ao papel institucional da Defensoria Pública na defesa dos direitos fundamentais de todas as dimensões. Deste modo, para além da criação, em 1988, de uma instituição pública com objetivo de tornar igualitário o sistema de justiça, atendendo o reconhecimento do direito fundamental das pessoas necessitadas à assistência jurídica e ao preceito de acesso à Justiça, o Estado vem ainda promovendo através da legislação infraconstitucional uma sofisticação deste órgão, alinhando-o cada vez mais ao compromisso da erradicação da pobreza e da marginalização, à redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III) e à construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I).
Portanto, há de se conceber uma assistência jurídica gratuita stricto sensu, que não só engloba a assistência judiciária mas também os demais mecanismos de resolução de conflitos e funções essenciais da Defensoria Pública em prol dos cidadãos referidos no dispositivo constitucional (art. 5º, inc. LXXIV). Há de se considerar, inclusive, todos os meios possíveis de preservação de direitos, podendo uma demanda jurídica, judicial ou extrajudicial, não necessariamente envolver uma lide – como se demonstra, por exemplo, no caso de um acordo contratual ou de um divórcio consensual. Diogo Esteves e Franklyn R. A. Silva exemplificam ainda melhor a amplitude dos serviços jurídicos para além do processo judicial:
Constituem arquétipos de assistência jurídica, por exemplo, o esclarecimento de dúvidas, a orientação jurídica preventiva, a elaboração de contratos, o auxílio legal para a conclusão de negócios jurídicos em geral, a composição extrajudicial de conflitos, a atuação em processos administrativos, a defesa de interesses em instâncias ex trajudiciais, a conscientização da população sobre seus direitos, etc. Não podemos esquecer, ainda, que a assistência jurídica, por englobar integralmente o conceito de assistência judiciária, também pode ser caracterizada pela propositura de ações judiciais, pela apresentação de defesa e pela atividade de acompanhamento do processo judicial, em todas as instâncias, até o seu encerramento.[21]
A assistência jurídica lato sensu, portanto, é a assistência jurídica integral e gratuita a qual se refere diretamente o art. 5º, LXXIV, da Constituição. É um conceito mais amplo, que abrange tanto o benefício da Justiça gratuita, prestada pelo Poder Judiciário, quanto a assistência jurídica stricto sensu, fornecida pela Defensoria Pública, além de englobar todas as iniciativas do Estado que têm por objetivo promover uma aproximação entre a sociedade e os serviços jurídicos – como, por exemplo, as campanhas de conscientização de direitos do consumidor promovidas por órgãos administrativos e os serviços jurídicos itinerantes prestados à população carente.
4 O CIDADÃO NECESSITADO E EM ESTADO DE VULNERABILIDADE
O pressuposto básico para o reconhecimento do direito à assistência jurídica integral e gratuita corresponde ao estado de necessidade do cidadão, ou, conforme o termo usualmente utilizado pela doutrina jurídica, a hipossuficiência de recursos. A Constituição estabelece em seu art. 5º, inc. LXXIV, ainda que de maneira ampla e imprecisa, o perfil do cidadão que faz jus aos cuidados estatais da assistência jurídica integral e gratuita para o acesso à Justiça: "aos que comprovarem insuficiência de recursos". O art. 134, por sua vez, ao instituir a Defensoria Pública, também traça minimamente seu destinatário: "aos necessitados, na forma do inciso LXXIV do art. 5º". A respeito da abrangência dos termos, leciona Judith Martins-Costa que
considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geral constitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seu enunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente "aberta", "fluida" ou "vaga", caracterizando-se pela ampla extensão do seu campo semântico.[22]
A conceituação normativa da pessoa com hipossuficiência de recursos tem sido classicamente realizada de maneira flexível desde a promulgação da Constituição brasileira de 1988. Até recentemente, a Lei nº 1.060/50, que estabelece normas para a concessão da assistência jurídica integral e gratuita, determinava como necessitado, para os fins legais, "todo aquele cuja situação econômica não lhe permitia pagar as custas do processo e os honorários do advogado, sem prejuízo do sustento próprio e da família"; no entanto, tal dispositivo legal (art. 2º, parágrafo único) foi revogado pelo art. 98, §3º, do Código de Processo Civil de 2015.
O direito do acesso à Justiça, bem como especificamente o direito da assistência jurídica integral e gratuita, foi por muito tempo encarado como um direito das pessoas pobres, associação que se demonstra deveras ultrapassada diante das interpretações contemporâneas do que se considera como "pessoa com insuficiência de recursos". Não obstante, mesmo a pobreza é um conceito vago que não delimita com exatidão o destinatário do direito. O popular Dicionário Aurélio lhe oferece três possíveis significados: estado ou qualidade de pobre; falta do necessário à vida, penúria, escassez; e classe dos pobres[23]. Cleber Alves aponta que o conceito de pobre é relativo, pois depende de circunstâncias culturais e se sujeita a modulações que variam de acordo com o estado de desenvolvimento econômico-social de cada sociedade; a noção de pobre na Finlândia, por exemplo, difere-se significativamente do que se caracteriza como pobre na Nigéria[24]. Não há determinação do que se caracteriza propriamente como penúria ou escassez, nem do conceito de pobre.
A pobreza como parâmetro para a concessão do direito do acesso à Justiça remonta à fase colonial da história brasileira: de acordo com as Ordenações Filipinas, que vigoraram até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916, um dos requisitos para a concessão do benefício da Justiça gratuita era o postulante dizer em audiência o juramento "Pater Noster pela alma del Rey Don Diniz"[25]. Posteriormente, no regime do Código de Processo Civil de 1939, o "atestado de pobreza" passou a ser fornecido geralmente pela autoridade policial, até que muito tempo depois, sem maiores alterações na questão do critério econômico, promulgou-se a sistemática da Lei nº 1.060/50[26] .
Na ordem jurídica atual, a miserabilidade econômica não é uma condição expressa para a concessão da assistência jurídica integral e gratuita; nos moldes constitucionais, para que se faça jus a tais mecanismos estatais, basta que haja "insuficiência de recursos" para o efetivo acesso à Justiça. Fredie Didier Jr., responsável pela incorporação plena da gratuidade de Justiça no Código de Processo Civil de 2015, esclarece que nem sempre o beneficiário será alguém em situação de penúria:
É possível que uma pessoa natural, mesmo com boa renda mensal, seja merecedora do benefício, e que também o seja aquele sujeito que é proprietário de bens imóveis, mas não dispõe de liquidez. (...) não se pode exigir que, para ter acesso à justiça, o sujeito tenha que comprometer significativamente a sua renda, ou tenha que se desfazer de seus bens, liquidando-os para angariar recursos e custear o processo.
A lei não fala em números, não estabelece parâmetros. O sujeito que ganha boa renda mensal pode ser tão merecedor do benefício quanto aquele que sobrevive à custa de programas de complementação de renda. O que pode diferenciá-los é a maior ou menor dificuldade com que o pedido de concessão do benefício é tratado: o de melhor renda pode ser chamado a justificar o seu requerimento, provando a insuficiência de recursos.[27]
A condição econômica, em verdade, não configura um limite expresso no texto constitucional ou legal, de modo que a definição de "necessidade" ou "insuficiência de recursos" não perpassa necessariamente o viés econômico-financeiro do cidadão (ou, ao menos, não apenas este). O constituinte deixou notoriamente uma larga margem ao legislador e ao intérprete para a construção do perfil institucional mais adequado à sociedade e à ordem jurídica por ele inaugurada[28] e, embora a condição de econômica tenha sido por muitos anos associada a um requisito para o direito do acesso à Justiça, atualmente jurisprudência, documentos internacionais e legislação infraconstitucional (sobretudo, a Lei Complementar nº 132/09) avançam em caminho diverso.
O Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento através do julgamento pelo Plenário da ADI nº 3.943[29], que versava sobre a constitucionalidade da Lei nº 11.448/2007 – responsável por incluir a Defensoria Pública entre os legitimados para o ajuizamento de ações coletivas. O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, o fez através do EResp nº 1.192.577[30], reconhecendo a possibilidade da Defensoria Pública atender a necessitados jurídicos não obrigatoriamente carentes de recursos econômicos.
No plano internacional, destacam-se as denominadas Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade, documento aprovado na XIV Conferência Judicial Ibero-americana, realizada em março de 2008. Dispõem as regras 3 e 4:
(3) Consideram-se em condição de vulnerabilidade aquelas pessoas que, por razão da sua idade, gênero, estado físico ou mental, ou por circunstâncias sociais, econômicas, étnicas e/ou culturais, encontram especiais dificuldades em exercitar com plenitude perante o sistema de justiça os direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico.
(4) Poderão constituir causas de vulnerabilidade, entre outras, as seguintes: a idade, a incapacidade, a pertença a comunidades indígenas ou a minoria, a vitimização, a migração e o deslocamento interno, a pobreza, o gênero e a privação de liberdade[31].
A vulnerabilidade emerge reconhecidamente como uma característica identificadora do cidadão destinatário da assistência jurídica integral e gratuita, desdobrando-se em hipossuficiência econômica, jurídica e organizacional[32]. Neste sentido, para além da necessidade no plano econômico, também existem os necessitados num ponto de vista constitucional muito mais amplo; ou seja, todos aqueles que são socialmente vulneráveis: os consumidores, os usuários de serviços públicos, os usuários de planos de saúde, os que queiram implementar ou contestar políticas públicas, como as atinentes à saúde, à moradia, ao saneamento básico, ao meio ambiente, entre outros.
A apreciação da vulnerabilidade, ainda que envolva a situação de necessidade econômica, inclusive na medida das incapacidades que pode gerar, rompe com a lógica que quantifica o cidadão em vez de qualificá-lo[33]. Assim, a assistência jurídica integral e gratuita concedida ao cidadão vulnerável considera as reais capacidades deste, visando a percepção de privações que podem ser de variadas ordens, e que, muitas vezes, incluindo ou não a questão da renda, se constituem em fatores da marginalização, da desigualdade e da discriminação que a Constituição visa, expressamente, erradicar.
Os conflitos sociais brasileiros em pauta não remetem somente à busca pela distribuição justa de bens materiais, mas também a embates que demandam integridade física, psicofísica, social, cultural, política e biopolítica, ou seja, o alcance a uma igualdade material que atravessa inegavelmente o acesso a um sistema justo que garanta a efetividade dos direitos fundamentais. É neste sentido que o acesso à Justiça proporcionado pelo Poder Judiciário, através do benefício da Justiça gratuita, e pela Defensoria Pública, por meio da assistência jurídica stricto sensu, especialmente em matéria de direitos sociais, tem o dever de integrar indivíduos e grupos vulneráveis ao espaço comunitário-estatal, cumprindo genuinamente o pacto social estabelecido pela Constituição brasileira de 1988.
5 O NOVO PERFIL INSTITUCIONAL DA DEFENSORIA PÚBLICA
A ascensão dos direitos sociais e o progresso do direito do acesso à Justiça no Brasil demarcaram o berço da Defensoria Pública, tornando-se esta a principal executora do direito da assistência jurídica integral e gratuita. A Constituição brasileira de 1988 não apenas trouxe o instituto da assistência jurídica como direito fundamental (art. 5º, inc. LXXIV) e autoaplicável (art. 5º, § 1º), como também previu, de maneira expressa, a entidade governamental responsável pela orientação jurídica e a defesa dos necessitados, consolidando a Defensoria Pública como "instituição essencial à função jurisdicional do Estado" (art. 134, caput). No campo infraconstitucional, a edição da Lei Complementar nº 80/1994 regulamentou a instituição a nível nacional, estabelecendo suas funções, seus princípios institucionais e os direitos, garantias, prerrogativas, proibições e impedimentos de seus membros; posteriormente, a Lei Complementar nº 132/2009 realizou diversas mudanças, inovando substancialmente nas normas gerais de organização, além de atualizar a defasada Lei nº 1.060/50, todas as alterações relacionadas a uma concretização mais tenaz do Estado Democrático de Direito.
A Defensoria Pública que outrora era compreendida como a instituição que defende o "pobre" hoje se oxigena com mecanismos de defesa da pessoa humana em todas as suas vulnerabilidades, inclusive a de ordem financeira e econômica, ou seja, volta-se à defesa da pessoa e da cidadania em todas as suas abrangentes carências e necessidades[34]. Foi neste sentido que a Lei Complementar nº 132/09 promoveu profunda mudança no perfil da Defensoria Pública, ampliando suas funções e caracterizando-se como mais um marco do acesso à Justiça na história do país[35]. Pode-se afirmar que o desenvolvimento de uma compreensão mais democrática do que se entende como cidadão necessitado e em estado de hipossuficiência, bem como do próprio espírito do direito do acesso à Justiça, provocou a instauração de um novo perfil institucional da Defensoria Pública[36].
Em relação às alterações da Lei Complementar nº 132/09 na Lei Complementar nº 80/1994, merecem destaque a consolidação das seguintes funções e objetivos: "a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais" (art. 3º-A, inc. I); "a afirmação do Estado Democrático de Direito" (art. 3º-A, inc. II); "promover, prioritariamente, a solução extrajudicial dos litígios, visando à composição entre as pessoas em conflito de interesses, por meio de mediação, conciliação, arbitragem e demais técnicas de composição e administração de conflitos" (art. 4º, inc. II); "promover a difusão e a conscientização dos direitos humanos, da cidadania e do ordenamento jurídico" (art. 4º, inc. III); "exercer a defesa dos interesses individuais e coletivos da criança e do adolescente, do idoso, da pessoa portadora de necessidades especiais, da mulher vítima de violência doméstica e familiar e de outros grupos sociais vulneráveis que mereçam proteção especial do Estado" (art. 4º, inc. XI); e "convocar audiências públicas para discutir matérias relacionadas às suas funções institucionais" (art. 4º, inc. XII).
A ampliação da legitimação à ação civil pública representa poderoso instrumento de acesso à Justiça, sendo admirável que a iniciativa das demandas que objetivam tutelar interesses ou direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos seja estendida à Defensoria Públi ca, a fim de que os chamados direitos fundamentais de terceira geração recebam efetiva e adequada proteção. O propósito de amparo aos cidadãos em estado de vulnerabilidade é justamente o principal fator que legitima a propositura de ação civil pública referente a interesses e direitos metaindividuais pela Defensoria Pública, uma vez que a análise da legitimação ad causam deixa de perpassar exclusivamente a necessidade econômica. A inovação se coaduna perfeitamente com os objetivos implementados pela Lei Complementar nº 132/09: a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades sociais; a afirmação do Estado Democrático de Direito; a prevalência e efetividade dos direitos humanos; e a garantia dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório.
A Associação Nacional dos Defensores Públicos (ANADEP) promoveu, após reunião do Fórum Justiça[37], em que se identificou a necessidade de mapeamento organizado das atuação da Defensoria Pública em prol de pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade, a elaboração do I Relatório Nacional de Atuação em Prol de Pessoas e/ou Grupos em Condição de Vulnerabilidade[38], oferecendo parâmetros contextuais para a completude do conceito de vulnerabilidade. O trabalho discorre sobre a atuação da Defensoria Pública para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA), pessoas vulneráveis no trânsito (ciclistas e pedestres), pessoas LGBT, pessoas vulneráveis em razão da idade (idosos, crianças e adolescentes), mulheres vítimas de violência, pessoas em situação de rua, pessoas integrantes de comunidades quilombolas, pessoas privadas de liberdade, pessoas usuárias de transporte coletivo e pessoas beneficiadas com programas de cultura ou alfabetização jurídica. A Defensoria Pública já empenha, portanto, esforços para, além do campo da desigualdade econômica, atuar mais efetivamente em prol da igualdade social e também pelo respeito às diferenças inerentes às pessoas humanas.
O novo perfil institucional da Defensoria Pública fundamenta-se especialmente na finalidade ampla e essencial de representar "expressão e instrumento do regime democrático" (art. 134. caput, da CRFB/88; e art. 1º, LC nº 80/94). A doutrina constitucional estrutura a democracia em três princípios ou valores fundamentais: a supremacia da vontade popular – participação popular no governo, seja diretamente ou por meio de representantes eleitos –; preservação da liberdade – como é o caso das liberdades ambulatorial, de expressão, de pensamento, artística, religiosa, de reunião, livre iniciativa, entre outras –; e a igualdade de direitos – em sentido material, respeitando-se o pluralismo e a diversidade entre os indivíduos. Nesta perspectiva, Pedro González elucida o papel da Defensoria Pública no Estado Democrático de Direito, sobretudo como expressão e instrumento deste:
(...) a Defensoria Pública é expressão e instrumento do regime democrático porque, respectivamente: (i) sua presença e atuação conscientes são manifestação do avanço da sociedade rumo à consolidação democrática, e (ii) no cumprimento das suas funções institucionais realiza os três princípios (ou valores) democráticos fundamentais – supremacia da vontade popular, preservação da liberdade e igualdade de direitos –, potencializando a democracia[39].
José Afonso da Silva ensina que a igualdade do Estado de Direito, na concepção clássica, se funda num elemento puramente formal e abstrato, qual seja a generalidade das leis, não havendo ainda base material que se realize na vida concreta. A tentativa de corrigir isso se deu por meio da construção do Estado Social de Direito, que, no entanto, também não foi capaz de assegurar por si só a justiça social nem a autêntica participação do povo no processo político. É o Estado Democrático de Direito, como entidade de legitimidade justa ou de justiça material, que instaura um processo de efetiva incorporação de todo o povo nos mecanismos do controle das decisões, e de sua real participação no funcionamento das instituições[40].
Significa dizer que as pessoas e os movimentos sociais ganham espaço para se apropriarem, como é do seu direito, da Defensoria Pública. Firma-se esta como um verdadeiro núcleo de resistência contra-hegemônico e um paradigma de atuação democrática, seja perante o Estado, seja perante a comunidade internacional, para uma promoção real de direitos humanos, na medida em que mobilizada pelas pessoas concretas que os titularizam. Como observa Glauce Mendes Franco, "um Defensor não fala em nome de alguém, alguém fala por intermédio do Defensor"[41].
Uma pesquisa realizada em 2013 por José Augusto Garcia analisou cerca de cinquenta atuações coletivas da Defensoria Pública em todo o Brasil, dentre os beneficiários prestigiados listam-se: usuários de creches públicas; pessoas com deficiências físicas ou mentais, adolescentes acolhidos em instituições; pessoas presas em condições degradantes, sem adequada assistência médica ou alimentar; familiares de prisioneiros; mulheres submetidas a revistas íntimas abusivas em estabelecimentos penitenciários; vendedores ambulantes; moradores de comunidades carentes; vítimas de desastres climáticos; pequenos produtores rurais atingidos por danos ambientais; moradores de rua; consumidores de baixa renda; pessoas idosas enfrentando problemas relacionados a planos de saúde; usuários de terminais públicos de transporte; estudantes da rede pública de educação que usam/necessitam de transporte coletivo gratuito; portadores de doenças crônicas; pessoas dependentes de equipamentos elétricos para manutenção de sua saúde; mulheres portadoras de câncer de mama; crianças enfermas; vítimas de amianto; portadores de hanseníase; coletores de materiais recicláveis; trabalhadores desempregados; mulheres grávidas em processo seletivo para admissão no serviço público; e muitos outros[42]. O espectro populacional que o critério da vulnerabilidade, inspirado pelo aperfeiçoamento do regime democrático, abrange é imensamente maior que o número de pessoas em situação de necessidade econômica.
A ampliação cada vez mais intensa do escopo de proteção inerente à expressão "assistência jurídica integral e gratuita" e "cidadão necessitado", ou "aos que comprovarem insuficiência de recursos", ao expandirem significativamente o papel institucional da Defensoria Pública, passa a demandar desta uma ampliação condizente dos seus serviços. A análise de viabilidade de atendimento ao cidadão, ou ao grupo social, não mais deve ocorrer por meio de simples conferência da hipossuficiência econômica.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O aprimoramento do papel institucional da Defensoria Pública, criada no seio da Constituição Federal de 1988 e desenvolvida ao longo das últimas três décadas, demonstra a devida relevância que tem sido atribuída por parte do Estado brasileiro ao direito do acesso à Justiça. Desde o seu surgimento, a instituição tem se enxertado de novos poderes, objetivos e funções, seja por emendas constitucionais ou pela regulamentação em diplomas legais. À Defensoria Pública, outrora reconhecida como mera "protetora dos pobres", hoje cabe grande aparato próprio de uma entidade considerada como instrumento e expressão do regime democrático: a função de difusão e conscientização dos direitos humanos e da cidadania; a promoção de ações coletivas para tutelar direitos difusos, coletivos ou individuais homogêneos; a preservação e reparação de direitos de pessoas em vulnerabilidade (consumidores, vítimas de tortura e abusos sexuais, indivíduos discriminados, crianças e idosos); dentre outras atribuições. A Lei Complementar nº 132/2009 – que atualiza a Lei Complementar nº 80/1994 –, a Emenda Constitucional nº 80/2014 e o Código de Processo Civil de 2015 correspondem aos principais mecanismos de modernização da assistência jurídica integral e gratuita.
Tamanho progresso na compreensão, tanto política quanto jurídica, sobre o direito do acesso à Justiça vem acompanhado de diversos desdobramentos de ordem prática: a abrangência dos serviços de assistência jurídica para além do processo judicial; a transição dos aspectos identificadores do cidadão economicamente necessitado para uma análise ampla do estado de vulnerabilidade humana em todos os seus aspectos; a preponderância do interesse de meios alternativos de resolução de conflitos; dentre outros. Ademais, o reconhecimento do direito do acesso à Justiça em sua completude supera o trivial idealismo teórico que ornamenta o Estado Democrático de Direito, demandando a real atuação do Estado em situações consideradas graves numa sociedade que se pretende livre, justa e igualitária.
A institucionalização da Defensoria Pública foi, sobretudo, uma deliberação política realizada pelo constituinte originário no sentido de direcionar a verba estatal necessária para que todos os cidadãos tenham as mesmas condições de acesso à Justiça. Decerto, não seria possível estabelecer um regime democrático sem possibilitar que o ordenamento jurídico se tornasse efetivo a toda a sociedade. Este projeto político foi revigorado pelo constituinte derivado através da Emenda Constitucional nº 80/2014, que estabelece metas de estruturação da Defensoria Pública em todo o território nacional, com condições e prazos específicos.
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[1] MORAES, Guilherme Peña de. Curso de direito constitucional. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 319; SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 16. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 1999, p. 117-119.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988; CAPPELLETTI, Mauro; GORDLEY, James; JOHNSON, Earl. Toward equal justice: a comparative study of legal aid in modern societies. Milan: Giuffrè Editore, 1975; CAPPELLETTI, Mauro (Org.). Access to justice and welfare state. Florença: European University Institute, 1981.
[3] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. cit., p. 11-12.
[4] MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Novo curso de processo civil: teoria do processo civil volume 1. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017, p. 172.
[5] SANTOS, Boaventura de Sousa. Introdução à sociologia da administração da Justiça. Revista Crítica de Ciências Sociais, Coimbra, n. 21, 1986, p. 125.
[6] FENSTERSEIFER, Tiago. O controle judicial das políticas públicas destinadas à efetivação do direito fundamental das pessoas necessitadas à assistência jurídica integral e gratuita. In: SOUSA, José Augusto Garcia de (Coord). Uma nova Defensoria Pública pede passagem: reflexões sobre a Lei Complementar 132/09. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 337
[7] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução: João Baptista Machado. 8. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 341.
[8] ABRAMOVICH, Victor; COURTIS, Christian. Los derechos sociales como derechos exigibles. Madrid: Editorial Trotta, 2002. (Colección Estructuras y Procesos), p. 24-25; RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 75.
[9] Neste sentido: LIMA, Frederico Rodrigues Vianna de. Defensoria Pública. 2. ed. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 65-67; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 185; SLAIBI FILHO, Nagib. A Constituição e a gratuidade da Justiça no CPC de 2015. In: SOUSA, José Augusto Garcia de (Coord.). Defensoria Pública. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 571-606. (Coleção Repercussões do Novo CPC, v. 5; coordenador geral, Fredie Didier Jr.); FENSTERSEIFER, Tiago. Direito a ter direitos efetivos: as dimensões normativas e eficácia do direito fundamental social à assistência jurídica integral e gratuita de titularidade dos indivíduos e grupos sociais necessitados (ou vulneráveis) à luz do atual regime jurídica constitucional e infraconstitucional da Defensoria Pública brasileira. 2016. Tese (Doutorado em Direito) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2016.
[10] ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! Assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2006., p. 38.
[11] SMITH, Roger. Human rights and access to justice. International Journal of the Legal Profession, v. 14, n. 3, nov. 2007, p. 1. Disponível em: < https://sas-space.sas.ac.uk/3428/1/Smith%2C_Roger_-_wghart.pdf>. Acesso em 29 de junho de 2019.
[12] ALVES, Cleber Francisco; GONZÁLEZ, Pedro. Op. cit., p. 92.
[13] MARINONI, Luiz Guilherme. Comentários ao artigo 5º, inciso LXXIV. In: CANOTILHO, J. J. Gomes, et al (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013, p. 1201.
[14] GÓMEZ ISA, Felipe. The Reversibility of economic, social and cultural rights in crisis context. In: MUNIATEGI, E.; KLEMKAITE, L. (Coods.). Local initiatives to the global financial crisis. University of Deusto, Bilbao, 2012 apud ALVES, Cleber Francisco; GONZÁLEZ, Pedro. Defensoria Pública no Século XXI: novos horizontes e desafios. 1. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017, p. 137.
[15] Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), art. VIII: "Todo ser humano tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei"; Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966), art. 14, nº 1: "Todas as pessoas são iguais perante os Tribunais e as Cortes de Justiça (...); Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), art. XVIII: "Toda pessoa pode recorrer aos tribunais para fazer respeitar os seus direitos (...); Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (2000), art. 47: "Toda pessoa cujos direitos e liberdades garantidos pelo direito da União tenham sido violados tem direito a uma ação perante um tribunal. (...) É concedida assistência judiciária a quem não disponha de recursos suficientes, na medida em que essa assistência seja necessária para garantir a efetividade do acesso à justiça".
[16] FENSTERSEIFER, Tiago. O controle judicial das políticas públicas destinadas à efetivação do direito fundamental das pessoas necessitadas à assistência jurídica integral e gratuita. In: SOUSA, José Augusto Garcia de (Coord). Op. cit, p. 343.
[17] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie North-fleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 3.
[18] DALLA, HUMBERTO. Direito processual civil contemporâneo: teoria geral do processo. 6. ed.. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 401.
[19] DIDIER JR., Fredie. Benefício da justiça gratuita: de acordo com o novo CPC. 6. ed. rev. e atual.. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 21-22.
[20] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Op. cit., p. 12.
[21] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Princípios institucionais da Defensoria Pública. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 96-97.
[22] MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 303.
[23] PORTAL DICIONÁRIO AURÉLIO, Positivo. Significado da palavra "pobreza". Disponível em: . Acesso em 23 de abril de 2017.
[24] ALVES, Cleber. Pobreza y derechos humanos: el papel de la Defensoría Pública en la lucha para la erradicación de la pobreza. In: III Congreso de la Associación Interamericana de Defensorías Públicas. Buenos Aires: Ministerio Público de la Defensa, 2008, p. 171.
[25] Ordenações Filipinas, Livro III, Título LXXXIV, §10, do Codigo Philippino (ou Ordenações e leis do Reino de Portugal): "Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pagua o aggravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma dei Rey Don Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o aggravo". Código Philipino, ou, Ordenações e leis do Reino de Portugal. Brasília, 2019. Disponível em . Acesso em 06 de abril de 2019, p. 5.
[26] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 7.
[27] DIDIER JR., Fredie. Op. cit., p. 60-61.
[28] SOUSA, José Augusto Garcia de. O destino de Gaia e as funções constitucionais da Defensoria Pública: ainda faz sentido (sobretudo após a edição da Lei Complementar 132/09) a visão individualista a respeito da instituição? Revista de Direito da Defensoria Pública, Rio de Janeiro, n. 25, 2012, p. 178; KIRCHNER, Felipe; BARBOSA, Rafael Vinheiro Monteiro. O direito de acesso à Justiça. In: ROSENBLATT, Ana et al. Manual de mediação para a Defensoria Pública. Brasília: Fundação Universidade de Brasília/FUB, 2014, p. 44; CASAS MAIA, Maurílio. A intervenção de terceiro da Defensoria Pública nas ações possessórias multitudinárias do NCPC: colisão de interesses (art. 4º-A, V, LC n. 90/1994) e posições processuais dinâmicas. In: DIDIER JR., Fredie et al (Coord.). Novo CPC doutrina selecionada, v. 1: parte geral. 2. ed. Salvador: Juspodvm, 2016, p. 1260.
[29] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação direta de inconstitucionalidade nº 3.943-DF. Relatora: Ministra Cármen Lúcia. DJ: 07/05/2015. Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em 30 de junho de 2019.
[30] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1.192.577-RS 2014/0246972-3. Relatora: Ministro Laurita Vaz. DJ: 21/10/2015. Brasília, 2015. Disponível em: . Acesso em: 30 de junho de 2019.
[31] REGRAS de Brasília sobre acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade. In: XIV Conferência Judicial Ibero-americana. Brasília, 2008. Disponível em . Acesso em 06 de abril de 2019, p. 5.
[32] FENSTERSEIFER, Tiago. Defensoria Pública, direitos fundamentais e ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 63.
[33] MARTINS, José de Souza. A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. 2ª ed. Petrópolis:Vozes, 2002, p. 12.
[34] FRANCO, Glauce. Critérios de vulnerabilidade. Direitos humanos e Defensoria Pública como expressão contra-hegemônica da democracia direta. In: FRANCO, Glauce; MAGNO, Patrícia (Orgs.). I Relatório nacional de atuação em prol de pessoas e/ou grupos em condição de vulnerabilidade. Brasília: ANADEP, 2015, p. 18.
[35] SOUSA, José Augusto Garcia de. Op. cit., p. 176.
[36] ESTEVES, Diogo; SILVA, Franklyn Roger Alves. Op. cit., 326.
[37] “O Fórum Justiça (FJ) se apresenta como um espaço aberto a organizações e movimentos sociais, setores acadêmicos, estudantes, bem como agentes públicos do sistema de justiça e outros atores que se mostrem interessados em discutir justiça como serviço público. Destina-se a estimular o debate em torno da política judicial no Brasil, observado o contexto ibero-latino-americano.” Disponível em: <http://www.forum justica.com.br/quem-somos>. Acesso em 07 de abril de 2019.
[38] FRANCO, Glauce; MAGNO, Patrícia (Orgs.). I Relatório nacional de atuação em prol de pessoas e/ou grupos em condição de vulnerabilidade. Brasília: ANADEP, 2015.
[39] ALVES, Cleber Francisco; GONZÁLEZ, Pedro. Op. cit., p. 40.
[40] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 120.
[41] FRANCO, Glauce. Critérios de vulnerabilidade. Direitos humanos e Defensoria Pública como expressão contra-hegemônica da democracia direta. In: FRANCO, Glauce; MAGNO, Patrícia (Orgs.). Op. cit., p. 43.
[42] SOUSA, José Augusto Garcia de (Coord.). I Relatório Nacional de Atuações Coletivas da Defensoria Pública: um estudo empírico sob a ótica dos "consumidores" do sistema de Justiça. Brasília, Anadep, 2013.
Bacharel em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pós-Graduado em Direito e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM)
Conforme a NBR 6023:2000 da Associacao Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto cientifico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: MOREIRA, Lucas Oliveira da Costa. O direito de acesso à justiça e a expansão do papel institucional da Defensoria Pública Conteudo Juridico, Brasilia-DF: 16 jun 2022, 04:06. Disponivel em: https://conteudojuridico.com.br/consulta/Artigos /58688/o-direito-de-acesso-justia-e-a-expanso-do-papel-institucional-da-defensoria-pblica. Acesso em: 28 dez 2024.
Por: Gudson Barbalho do Nascimento Leão
Por: Maria Vitória de Resende Ladeia
Por: Diogo Esteves Pereira
Por: STEBBIN ATHAIDES ROBERTO DA SILVA
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